#17 Cozinha sem Fronteiras e a Mercearia da Vidal
Sobre as escolhas de sobrevivência e o resgate de uma seção que ficou lá nas primeiras cartinhas
Oi, tudo bem?
Maio é um mês bem importante no meu calendário. Posso dizer que é o mês em que a minha história de vida começou, afinal, foi num maio muito distante que meus pais se casaram (me superei na breguice dessa frase… mas, né? Trago verdades… sorry). Tem o Dia das Mães, que a gente lembra sendo ou não mãe, tendo ou não mãe. E tem o aniversário de muita gente que amo… do Ro - que vai cinquentar!, da Evelyn, da Laura, da Nanda… Aliás, o dia do aniversário da Nanda, dia 15 de maio, também é o dia em que desembarquei no Aeroporto Afonso Pena, em São José dos Pinhais, região metropolitana de Curitiba, há exatos 19 anos.
Morar em Curitiba nunca foi fácil, apesar de ter sido uma escolha. Não sei se tão consciente assim, mas foi uma escolha, da qual eu não me arrependo. O ponto é que escolher viver em outra cidade não é tão simples quanto se aparenta. E o passar dos anos vai nos mostrando outros caminhos que poderiam ter sido tomados, caso a escolha fosse diferente. Isso bate nas nossas costas diariamente. De novo, foram escolhas e bora conviver com o resultado delas.
Agora, imagina se você é obrigada a se mudar. Seja para oferecer mais segurança para sua vida ou a da sua família, seja porque condições sociais te levam a procurar um outro lugar para manter sua família viva. Ser obrigada a fazer uma escolha como essa, ainda pode ser denominada uma escolha, mas é uma escolha pela sobrevivência. E essa obrigação muda todo o conceito dessa escolha. É isso que as famílias refugiadas fazem. Elas escolhem sobreviver. Especialmente as mulheres.
A família da Lida, que mencionei na última carta, embora seja do Afeganistão, veio do Irã, pois sabiam que não poderiam voltar para o seu país de origem. O Brasil não estava na lista deles para se refugiar. Era preciso aceitar a escolha que estava sendo mostrada naquele momento. Jacque, nossa segunda convidada na Cozinha Sem Fronteiras, por rivalidade entre famílias, veio fugida do Benin para viver um grande amor. Cristina, da Venezuela, quis acompanhar seu marido, que veio a trabalho e ela foi muito clara do porquê de optar pelo nosso país: o acesso ao sistema de saúde brasileiro, para ela e seus três filhos.
Independente de cada uma das escolhas, quase sempre carregadas de dor, é a comida que permeia a saudade e resgata a história de cada uma delas. Nunca vou esquecer a frase da Jacque: “Meu filho gosta mais da comida da minha terra do que da comida do Brasil”. Enzo, que nasceu aqui, 11 dias após Jacque e seu então companheiro chegarem a São Paulo, nunca esteve no Benin. E ela vai para cozinha reproduzir as receitas da sua casa para aplacar essa saudade de estar junto com seus irmãos, festejar a vida com a família ao mesmo tempo ensinando para o seu filho o que é o amor.
Como funciona a Cozinha Sem Fronteiras
A ideia do projeto Cozinha sem Fronteiras é criar um ambiente acolhedor para mulheres migrantes e/ou refugiadas, trazê-las para mais perto da nossa sociedade, criando relações e buscando a divulgação de seus trabalhos. Além de tentar proporcionar uma renda extra para ela em troca de trazer a cultura e os hábitos alimentares de seu país de origem para um público que gosta de experimentar e conhecer comidas novas/típicas.
Por isso mesmo, 40% do lucro total do evento vai para ela. Ainda consideramos pouco, tamanho é o trabalho e a dedicação para que o evento aconteça, mas é o possível no momento. Contamos também com a colaboração da casa que nos recebe, atualmente o Negrita Bar e com o projeto gráfico desenvolvido pela designer Talita Bacetti. Eu e a Roberta Cibin, somos responsáveis pela viabilização de tudo, com divulgação, testes, reservas, fotos, compras e tudo mais que envolve a produção do evento.
Não temos um calendário específico, a ideia inicial era produzir um evento a cada 2 meses, mas o custo é alto e a vida também corre de uma forma não linear. E sem dúvida, isso era possível, quando tinha a Mandarina. Agora, ficou ainda mais difícil. Fizemos o primeiro de 2024 em abril e a ideia é produzir o próximo para setembro. Anote aí na agenda!
Ah, claro, estamos sempre em busca de apoiadores, patrocinadores ou quem quiser colaborar. Me chama por aqui para trocarmos uma ideia.
RECEITA
Uma dificuldade que temos durante o evento é trazer para a realidade de um negócio de gastronomia (serviço de restaurante), uma comida ou receita que, muitas vezes, é caseira, com dicas e ideias feitas pela família, etc. Ainda mais, quando a maioria das participantes não tem a devida experiência em uma cozinha profissional. Por isso mesmo, não temos todas as receitas que foram feitas ao longo das sete edições. Temos os cardápios, claro, mas as receitas produzidas de cada uma ficaram pra trás. Estou tentando recapitular todas para tentar catalogar, mas os segredinhos, a maioria, vão ficar de fora.
Um ponto que acho bem interessante e devemos pensar muito a respeito, especialmente em relação às nossas heranças ancestrais, é o quanto carregamos da cultura e da comida dos povos que vieram para o Brasil, especialmente os da África. Por exemplo, você sabia que o povo da região da Costa do Benin, foi o principal povo escravizado para o Brasil? E que o maior e mais ativo porto a receber os navios para o tráfico humano era lá? Muitas das nossas heranças de preparo e uso do alimento vem daí - assim como dos povos originários do Brasil. Infelizmente, uma comida estigmatizada e tratada como pobre, pela elite branca brasileira focada mais nos hábitos europeus.
A Cozinha sem Fronteiras também nos ajuda a refletir e repensar sobre esses aspectos que são culturais e estruturais. É possível pensar sobre o alimento, acesso, formas de aproveitamento e cocção, além dos termos já mencionados, cultura e estrutura social. A comida da Jacque do Benin podemos dizer que era muito simples, embora com muito aroma e sabor, mas os temperos usados são os mais acessíveis possível. Cebola, alho, pimenta, gengibre entregam todo o sabor do preparo.
Jacque nos apresentou o Fufu, que podemos dizer que é um primo-irmão da nossa polenta aqui do Sul ou do angu no Sudeste e Nordeste (alô Angu do Gomes!). Feito de mandioca e banana da terra, ele acompanha guisados e ensopados e é muito tradicional em diversas regiões africanas. O Fufu é fácil de fazer, mas exige braço e um pouco de técnica para não perder o preparo. Quase sempre, precisa ser feito e consumido na hora, pois endurece rapidamente. Ah!!! E um liquidificador muito potente!
Na edição em que participou, Jacque fez o Fufu para acompanhar um Man Tindjan, um ensopado de folhas verdes (a folha mais usada não é encontrada no Brasil, por isso, usamos a couve), tomate, gengibre, peixe e carne (linguiça, principalmente).
Fufu
Ingredientes
200g de mandioca
100g Banana da terra
Modo de Preparo
Descasque a mandioca e a banana-da-terra. Bata no liquidificador com um pouco de água por 5 minutos. Depois, leve a panela em fogo médio, adicionando água e mexendo sem parar até soltar do fundo da panela.
Esse vídeo lindo foi filmado e editado pela Marcella Cabral, que nos acompanhou em algumas edições da Cozinha Sem Fronteiras. A série continua, mas talvez dê um tempo dela na próxima cartinha, talvez tenha uma edição extra, tudo é quase possível! Me espera e se puder, recomende a newsletter para alguém. Agradeço de coração.
MERCEARIA DA VIDAL
Resgatei essa seção de uma das primeiras cartinhas quando eu achava que poderia produzir um caderno de cultura/gastronomia sozinha e da minha cabeça. Tolinha!
Pensei bem e acho que pode ser um formato interessante: como uma boa mercearia, um pouco portuguesa, outro tanto espanhola e sempre muito brasileira (talvez, latina seja a melhor definição…), é lugar onde você encontra de tudo um muito. Você entra aqui, pode comprar leite de cabra, um pacotinho para fazer sagu, papel de presente, talvez uma tinta de cabelo e ainda usar o telefone fixo. E anota tudo no caderninho para pagar no fim do mês.
Ou seja, de agora em diante, em todas as cartinhas, você vai encontrar a Mercearia da Vidal e em cada uma, uma coisa diferente. Pode ser dicas de livro, séries, filmes, compras… O que vi, experimentei, gostei ou ainda desejei!! Acho que pode ser uma boa ideia, né?!
Vamos começar?
=> Está todo mundo falando da série Baby Reindeer (Netflix), e provavelmente a estarei assistindo quando mandar essa carta, no entanto, arrisco a dizer que Ripley é a grande minissérie do momento.
A história, já conhecemos do filme com o Matt Dalmon e Jude Law (coraçãozinho…) e, recentemente, vimos ela “se repetir” em Saltburn, embora a roteirista e diretora negue a inspiração. Uhuuuummmm
A diferença é o tempo. Aliás, tenha calma. A edição é lenta, tem muitos silêncios, repetições, vazios e escadas! Tem muitos detalhes e a fotografia em preto e branco é um personagem à parte. Tem muitos diálogos em italiano e até uma visita à história do pintor renascentista Caravaggio, onde luz e sombra dominam o enredo, dele e da minissérie. E ainda tem o queridinho padre de Fleabag, quer dizer, o maravilhoso ator Andrew Scott, que entrega um Ripley sedutor, irônico e ególatra de primeira.
=> Em tempos de Ozempic, assistir Máfia da Dor (Netflix) é ficar com muito ódio da indústria farmacêutica e da classe médica… então, assista!
=> A jornalista Flávia Schiochet escreveu uma matéria riquíssima sobre o mercado da carne cultivada (ou seja, produzida em laboratórios), o dilema entre os segredos de negócios das startups e os estudos científicos em universidades e a falta de transparência em um mercado promissor em pesquisa, mas nem tanto em resultado. Para quem gosta de comida e ciência o texto é leve e didático na medida certa.
Pablo, qual é a música
Já pensei em colocar só uma música e pronto. Deixar de lado, guardar para mim mesma, o que eu acho, penso, lembro ou sinto a respeito dela e minhas divagações mil. Ao mesmo tempo, acho uma troca tão interessante… muitas vezes, recebo comentários sobre a música ou sobre o artista ou como bate a música no outro. Enfim… ainda estou pensando aqui como conduzir.
Hoje, deixo só essa música da Adriana Calcanhotto.
Maresias é divertida, alto-astral, dá vontade de pegar um barco qualquer e explorar o mundo. Quando toca, eu aumento muito o som e tenho vontade de dançar. Então, eu danço e canto, como se fosse um marinheiro solto na imensidão do mar para ninguém me ouvir.
Obrigada por chegar até aqui.
Último recadinho: um dia das mães sereno, leve e cheio de amor.
Especialmente para a sua mãe, onde quer que ela esteja.
Beijocas e até loguinho
Rê
Isso me fez recordar a alegria de uma operadora de caixa aqui do mercado da cooperativa de alimentos. Passei com um tanto de quiabos (frescos e raros por essa esquina do mundo) e ela salivou com a lembrança do fufu na terra dela❣️