#36 Uma biblioteca na cozinha - parte 1
Lancei a braba e agora tenho que dar rumo a essa prosa. O desafio de entender o papel da comida nas artes está maior do que o imaginado e isso é muito bom
Oi, tudo bem?
Janeiro não acabou. É o maior janeiro do ano (WTF, Renata), não tem cartão de crédito que resista ou criatividade para lidar com crianças em férias. Opa, lembrei, tenho um adolescente que já se vira sozinho. Risos nervosos. Mas a analogia é essa, o primeiro mês do ano não termina nunca e eu estou enrolando horrores para voltar ao assunto que lancei na edição #35.
Até fiz uma newsletter que não foi pra ninguém e se você ainda não leu, vem aqui dar uma olhada nos meus devaneios de uma mulher menopausática.
Agora chega de enrolação e vamos ao que interessa!
Um banquete chinês
Estava com muita dificuldade de começar essa segunda newsletter. No meu planejamento virginiano lógico, eu faria uma série de entrevistas e colocaria uma arte por dia para trazer os contrapontos e questões debatidas. No entanto, até agora, graças às conversas que fiz, estou com novas perguntas e vontade de juntar tudo num grande caldeirão.
Então, vou aos poucos.
No fim de semana, fui convidada para um almoço comemorativo do Ano Novo Chinês (data certa é dia 29/01). Embora no convite estivesse escrito para ir de vermelho ou dourado, eu era a única com um vestido amarelo ovo, quase ouro. Além de errar o modelito - na minha interpretação eu estava certa -, conhecia poucas pessoas além da anfitriã. Aproveitei para bater uns papos aleatórios com o Ro e observar a capacidade do ser humano de celebrar momentos importantes ao redor da mesa e de uma boa comida.
Seguindo as regras do grande banquete chinês, foram servidos 12 pratos, onde os ingredientes não devem ser repetidos. Anchova assada, bao, uma barriga de porco caramelizada - perfeita, diga-se de passagem -, frango bang-bang (que deveria ser peru…), carne bovina a 5 especiarias - certeza que tinha anis, berinjela com alho e açúcar, abóbora apimentada, um caldo de porco moura - de morrer dentro dele - com bolinho de porco e peixe - pausa dramática!, frango kung pao, macarrão shop suey, ovos mexidos com camarão e arroz. Ufa!
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Era muita comida gostosa junta e foi um deleite estar ali naquela celebração. Entender a importância da comida dentro do contexto social de união. “A comida é uma banqueta de três pernas. A nutricional, a social e a sensorial, do prazer”, disse a Carolina Garofani, na conversa que tivemos recentemente. Mais uma analogia perfeita para compreender a alimentação como um todo e sua importância em momentos de comunhão.
Carolina entende do babado. Comunicadora de mão cheia e confeiteira de primeira, já teve loja na cidade e hoje produz o melhor (na verdade, único) panetone de fermentação natural possível. Tivemos uma conversa bacana sobre comida e arte e ela volta por aqui em outros momentos.
Ah! Quem ofereceu o banquete foi a chef e food stylist Ana Spengler. Em breve, terei uma conversa com ela também (ela nem sabe desse combinado, mas já estou contando com o papo).
Um agradecimento muito especial à Ana, por todo prazer alcançado.
Uma biblioteca na cozinha
PARTE 1
Se tem uma arte que encontra a comida com uma frequência absurda, é a literatura. Não, não estou falando dos livros de receitas - mas irei falar muito sobre eles, em algum momento.
A literatura encontra a comida das formas mais inesperadas. Pode ser num romance que vai te fazer chorar até não poder mais, como o Aos Prantos no Mercado, da Michelle Zauner, com tradução de Ana Ban (eu não consegui passar do primeiro capítulo, pois gatilhos). Seja em biografias e outros tantos de autoficção, como o Cozinha Confidencial, do Anthony Bourdain, com tradução de Beth Vieira e Alexandre Boide, ou o do Carême - O Cozinheiro do Rei, de Ian Kelly, tradução de Marina Slade Oliveira.
E tem os livros de crônica - meus preferidos. Nesta categoria, temos uma lista imensa de autores que se dedicam ao ofício. E o assunto não vai se esgotar nesta edição.
Aliás, você sabia que a Rita Lobo tem um livro de crônicas com receitas, de 2008, com uma luxuosa apresentação da Nina Horta? Pois é, dentro do site de receitas Panelinha, ela encontrou tempo e disposição para escrever histórias. Foi neste livro que eu aprendi a fazer ovos cocotte, um clássico aqui em casa. A conversa chegou à cozinha é um belo exemplo de como podemos juntar a literatura e a comida.
Como falei, exemplos não faltam e é impossível - para mim, no caso - não mencionar o livro da minha amiga Ana Holanda, Minha mãe fazia, onde revisitei receitas da infância, como a Torta de Liquidificador, mais um clássico aqui de casa.
Semana passada, tivemos uma conversa bem interessante sobre o poder da crônica, que pode retratar o dia-a-dia e o ordinário da vida ou o extraordinário de banquetes cheios de pompas e circunstâncias.
E sim, Nina Horta entrou nos exemplos. “Nina tinha a capacidade de viver a comida de uma maneira tão intensa que a comida se tornava ali um personagem super importante daquele texto”, explica Ana. “Ela era impressionante, trazendo a comida como guia do texto”, complementa. Ana reconhece que trabalha a comida em suas produções de uma forma diferente, onde a emoção tem um destaque maior, especialmente quando essa emoção é causada pela própria comida. E esse também é o poder da crônica.
“Meu texto é sobre uma história, e a comida pode me levar até ela, como ela fosse o ponto de partida, o start para alguma coisa, mas ela nunca é o personagem para mim. São formas diferentes de viver a palavra, então eu vivo a palavra por um outro lugar”, diz Ana.
É, tenho muito que ler e aprender com Nina, Ana e Rita.
Prato do dia
Desta vez, o livro escolhido foi o do Yotam Ottolenghi. Nascido em Jerusalém, hoje mora em Londres onde é sócio de um palestino em um rede de restaurantes que leva seu nome, além dos famosos NOPI e ROVI. Escreve para o jornal Guardian e com frequência contribui para a seção de comida do New York Times e tem alguns livros publicados, como o Comida de Verdade, Jerusalém e Simples. Segundo a jornalista Patrícia Ferraz, que já foi em um dos seus restaurantes: “Foi ele quem ensinou o mundo ocidental usar condimentos e especiarias do Oriente Médio para temperar massas, legumes e saladas. Popularizou sumac, has-el-hanut, zaat’ar, harissa, melado de romã, água de flor de laranjeira, tahine….”
E isso é um ponto, a lista de temperos de seus preparos costuma ser imensa.
Escolhi a receita por achá-la desafiadora. Não no fazer, mas por ser algo que não faríamos normalmente. A receita foi tirada do livro Ottolenghi Simples, Yotam Ottolenghi com Tara Wigley e Esme Howarth, com tradução de Ligia Azevedo, 1ª edição, Companhia das Letras, 2020.
Sopa fria de pepino, couve-flor e gengibre
Segundo o livro: O gazpacho está disseminado como a sopa fria do verão que acabamos esquecendo outras opções. Esta é uma alternativa refrescante e cheia de texturas. Se encontrar pepino libanês à venda, aproveite. Eles são menores e mais firmes. Como têm muito menos água, também são mais saborosos.
Essa sopa dura 2 dias na geladeira. A amêndoa deve ser tostada e acrescentada imediatamente antes de servir
Ingredientes
4 ramos de hortelã fresca
1 pedaço de gengibre de 12 cm, sem casca: ⅔ ralado grosso e o restante cortado em fatias finas com cerca de 3 mm de espessura (90g) - fiz tudo de olho
½ de couve flor pequena, em floretes de 2 cm (350g)
3 pepinos grande ou 8 pequenos, sem casca, sem sementes e grosseiramente cortados (650g)
1 dente de alho amassado
500g de iogurte grego - cuidado nessa hora. Temos muitos iogurtes disponíveis, não pode ter qualquer adição de açúcar. Deixa a sopa enjoativa.
2 colheres (sopa) de sumo de limão-siciliano
60 ml de azeite
70g de amêndoa laminada
2 colheres (chá) de hortelã seca
Sal e pimenta branca
Preparo
Coloque 800 ml de água em uma panela média e acrescente os ramos de hortelã fresca, fatias de gengibre e 2 colheres (chá) de sal. Deixe ferver, acrescente a couve-flor e escalde por 2 a 3 minutos, até que esteja cozida al dente. Escorra e reserve. A hortelã e o gengibre podem ser descartados - olha, acho que vale deixar esfriar e usar um pouquinho dessa água.
Em um liquidificador, ou processador de alimentos, junte o pepino, o gengibre ralado, o alho, o iogurte, o sumo de limão-siciliano, 1 colher (chá) de sal e ½ colher (chá) de pimenta branca (uso sempre a preta mesmo). Bata até ficar homogêneo e leve à geladeira por ao menos 1 hora - aqui, eu colocaria umas duas colheres a água do cozimento da couve-flor.
Aqueça o azeite em uma panela pequena em fogo médio e junte a amêndoa. Cozinhe por 3 a 4 minutos, mexendo com frequência até que a amêndoa esteja levemente dourada - cuidado que a amêndoa para queimar são dois pulos… Transfira para outra tigela e inclua a hortelã seca. Acrescente uma pitada de sal e deixe esfriar.
Na hora de servir divida os floretes de couve-flor em quatro tigelas e despeje a sopa fria por cima. Ponha a mistura de amêndoa no topo e sirva.
Minhas considerações
Eu não gosto da couve-flor em pedaços. Acho que vai ficar mais cremoso e dar um sabor extra se ela entrar, depois de esfriar, no liquidificador junto com os demais ingredientes. Acho que pode trazer uma elegância ao preparo. E claro, usar um iogurte grego sem um pingo de açúcar para não ficar enjoativo. No mais, acho que vale experimentar em um dia de verão.
Obrigada por chegar até aqui.
Beijocas
Rê
que delicia de leitura
Vc não fez a sopa de pepino? Eu acho que nunca vi esse pepino libanês.
Ando completamente viciada em pepino japonês.